terça-feira, 26 de setembro de 2023

DA ESCOLA ALVOROÇADA

 


Doze anos de escolaridade obrigatória para praticar a indisciplina e obter a diplomada ignorância que habilita qualquer coitado a ser caixa de supermercado – bem melhor seria ir aos ninhos, ou aos gambozinos – faz-nos duvidar que a escola possa ser uma coisa boa. Aliás, a ser uma coisa boa não seria obrigatória.

Ao duvidarmos da bondade da escola, duvidamos também que os professores em guerra contínua e longa com o governo que está como treino para o confronto com o que virá tenham em mente mais do que defender os seus interesses particulares, por muito que invoquem altruísmos de conveniência. De qualquer forma, é para mim uma quase certeza que, grite-se ou não por uma “escola pública de qualidade”, não se vê quem olhe friamente para o que a escola efectivamente é: um cadáver adiado que nem sequer procria, dado que nela e por ela se parte da ignorância para mais ignorância ainda, antes de mais porque se repisa o que foi sem perspectivar o que será. Incentiva-se a interpretação superficial de coisas que não se percebem nem se almeja perceber, estimulando-se a opinião – que não a crítica – sobre ideias que não se conhecem nem se aprofundam.

Enfim.

Muitas vezes fica-nos a sensação de que se organizou o caos no sentido da borga. É, pelo menos, o que parece quando observamos os arraiais indecorosos de aludidos professores que exigem respeito enquanto bolçam impropérios, como se respeito fosse coisa de sentido único.

                                                                                                            Abdul Cadre

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

APOCRIFIA

 

Certamente que apócrifo, todavia interessante, corre entre budistas um texto que aventa as seguintes regras para uma sã convivência social:

1 Abriste? Fecha.

2 Acendeste? Apaga.

3 Ataste? Desata.

4 Sujaste? Limpa

5 Usas? Cuida

6 Estragaste? Repara

7 Não sabes arranjar? Pede a quem saiba.

8 Queres usar o que não é teu? Pede permissão

9 Emprestaram-te? Devolve

10 Não sabes? Não intervenhas

11 É grátis? Não desperdices

12 Não te chamaram? Não te intrometas

13 Não sabes fazer melhor? Não deprecies

14 Não vais ajudar? Então não perturbes

15 Prometeste? Cumpre

16 Ofendeste? Pede desculpa

17 Não te perguntaram? Não opines

18 Disseste? Assume

terça-feira, 28 de junho de 2022

HOJE É O TEMPO EM QUE TÃO MENTIROSO É O QUE MENTE COMO AQUELE QUE FALA VERDADE


A razão de chamarmos aos dias que correm – e faz todo o sentido chamar – tempos de pós verdade, é porque a verdade do que se afirme ou o compromisso que se tome deixaram de ter qualquer importância. Esta situação criou raízes profundas porque ao mentiroso não se imputa qualquer ónus, antes pelo contrário: o povo acarinha os mentirosos que invoca e segue, não ignorando de modo algum que mentem. Aliás, exige que mintam, precisa que mintam para alimentar as ilusões, que são a sua metadona, de que não se quer o desmame. Este é um tempo em que chamar mentiroso a alguém não implica que o seja, tanto faz, a novilíngua veio para ficar e as palavras deixaram de ter significado próprio, são uma espécie de cuspo que se dá na linha do discurso para que entre bem no buraco da liberdade de expressão que vilmente vamos inventando para protelar a nossa requerida inumação.

NESTE LUGAR INSALUBRE

 

As nossas sociedades doentes não são lugares agradáveis para uma vida saudável, despreocupada e feliz. É por isso que todos somos mais ou menos doentes, na dependência directa da nossa resistência.

Fundámos uma cultura baseada no ter e é do ter que pretendemos retirar toda a felicidade e bem-estar, alienando aquilo que em nós é mais humano. Tornámos a vida uma competição de todos contra todos e substituímos as crenças antigas por crenças novas mais ilusórias ainda do que aquelas. Não nos apercebemos sequer que a própria ilusão é uma doença, uma doença da imaginação.


segunda-feira, 27 de junho de 2022

AFORISMOS E DESAFORISMOS

 V.N. 28 Junho de 2021

Eu sou viciado em aforismos, todavia mais nos meus do que nos de terceiros. Quando cito aforismos de outros é por despeito de não ter sido eu a escrevê-los.
Mas neste mundo das redes anti-sociais cita-se demasiado, por vezes deturpado, outras vezes atribuindo a autores de nomeada coisas que eles não escreveram nem escreveriam. Por exemplo, já tropecei dezenas de vezes no erro comum de atribuir a Voltaire aquela frase desconchavada de «eu não concordo com o que dizes, mas defenderei o teu direito a dizeres isso» – tem várias nuanças a frase, mas a ideia é esta – Voltaire não disse isto nem parecido.
Mas há pior: atribuir a pessoa respeitada uma série de baboseiras tipo new age que a pessoa, pensando precisamente o oposto, nunca diria, .
Andou por aqui, pela milionésima vez, aquela frase atribuída a Heraclito de não podermos banhar-nos duas vezes nas águas do mesmo rio. A frase foi mal citada, provindo com certeza de uma deficiente tradução; não referia as águas do mesmo rio, mas o rio. E Heraclito podia ter dito a frase dessa forma, porque ele não queria referir-se ao rio, mas ao tempo. Era uma metáfora para transmitir a ideia de como o tempo flui. Em outra frase diz assim: «Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio». A ideia é que o tempo flui, não se detém. Usando tropo similar, diz também: «Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos», querendo significa o perene devir. Similarmente, diz também: «Para os que entrarem nos mesmos rios, outras e outras são as águas que por eles correm».
Mas quando nos debruçamos sobre o que disseram ou não disseram filósofos que não estão cá para confirmar ou desmentir as frases popularizadas, é bom que tenhamos em conta que não há grandes pensadores sem dizeres paradoxais. Agostinho da Silva assumiu sem constrangimentos quanto o paradoxo pode ser precioso num «livrinho» – não sei se foi publicado – que primeiro chamou de «Reflexões, Pensamentos e Paradoxos», que depois rectificou para «Pensamentos, Aforismos e Paradoxos».
Ele escreveu no aforismo 14: «Ser ou Nada são os dois nomes que dou ao mesmo alguma coisa ou nenhuma, que não tem nome; à qual pôr um nome é sacrilégio».
Eu respondi-lhe assim: «No acto mágico de matar – e possuir pelo nome é matar – é em nós que a magia resulta, e também naqueles que se nos submetem. Pelo nome todas as mortes são possíveis, e assim mesmo a de Deus. Morte actual e não real.»
Façam leituras. De tudo o que leiam nada aceitem, mas que nada vos seja indiferente, ou perderam o tempo com a leitura. O papel aceita tudo. Quem aceita tudo o que está escrito faz de papel, não de leitor.
Façam o favor de não ser infelizes, ou sejam felizes, se forem suficientemente egoístas e inconscientes.
ABDUL CADRE

sexta-feira, 10 de junho de 2022

FAKES, TONTICES E FALTA DE ATENÇÃO.


É minha convicção que os navegadores das chamadas redes sociais, na sua grande maioria, pecam por desatenção, futilidade e vontade de acreditar no que mais jeito dá. No meio de tudo isto, fica ausente o espírito crítico e prevalece o slogan, as ideias feitas e a resposta formatada. Por exemplo: é frequente aparecer no Facebook um post em que, a acompanhar uma foto duma artista de filmes porno (Mia Khalifa) se coloca uma legenda com mais ou menos estes dizeres: «Fulana, aluna do Liceu de Freixo de Espada à Cinta, ganhou as Olimpíadas Mundiais de Matemática e os media nada disseram. Se fosse um futebolista não faltariam os elogios, mas como é uma jovem estudante, ainda por cima da província...».


Isto aparece há vários anos, mais do que uma vez por ano, e não adianta denunciar, é uma febre incurável e recorrente. As partilhas somam-se por muitos milhares. Ninguém duvida daquela idiotice nem repara na mais do que suspeita figura retrata, insuficientemente jovem para andar no liceu, de formas sensuais exuberantes. Ninguém se dá ao trabalho de ir constatar que não existem Olimpíadas de Matemática e que o instituto invariavelmente apontado como organizador não existe. Mas dos comentários, a tónica geral é a da conveniência de atacar o futebol para armar ao pingarelho, reflexo condicionado da formatação recebida. Que hipócritas!

Ora bem: os benfiquistas são 6 milhões (dizem eles), os portistas 3 milhões (dizem eles), os sportinguistas 2 milhões (dizem eles) e esta massa, a totalidade do povo português, para que os referidos clubes não joguem apenas entre eles, apoia uma série de clubes figurantes. Conclusão: os comentários a condenar o futebol são tão falsos quanto o post que vimos referindo. Não sei se repararam, mas estes dichotes acerca dos milhões de adeptos procuram ser irónicos. Eu sei, eu sei que os assanhados do comentário levam tuto à letra e só lêem pela rama, mas paciência.

Por estes dias, depois de já termos visto esta coisa dezenas de vezes, anda a circular nas redes aquela foto esmaecida, para armar ao antigo, colocada agora por um tal Primoz Gosak, com a legenda: «Por favor, ajudem! Encontrei esta foto no chão em frente ao Lidl. Na página de trás diz: "Mãe e pai, 1955". Adoraria devolvê-lo ao seu dono, parece uma foto preciosa. Por favor compartilhem para que possamos encontrar o dono! Obrigado

Interessante é que o original deste tal Primoz Gosak – e vá lá saber-se por que corre em português – está escrito em sérvio e não diz exactamente o que anda a circular. Em sérvio diz: «Prosim pomagajte! Tole sliko sem našel na tleh pred Lidlom. Na zadnji strani piše, " Mami in oči, 1955". Z veseljem bi jo vrnil lastniku, izgleda kot stara in dragocena fotografija. Prosim delite da najdemo lastnika! Hvala.» O Google diz que este arrazoado se traduz assim: «Por favor ajude! A força aérea não está lá. Na parte de trás está escrito "Mamãe e papai, 1955". Para onde quer que você olhe, há uma bela sessão de fotos de arrastar e soltar. Vamos dar um passeio! Obrigado.».

Já viram o despautério?

Mas adiante. Na tal foto esmaecida estão os actores Crispin Glover e Lea Thomson, que na trilogia de ficção científica dos anos 80, Regresso ao Futuro, representavam os papéis de pai e mãe do herói Marty MacFly.

 

Já falámos bastas vezes de uma outra doença facebookista, que é, digamos, o citacionismo – esta inventei agora e não deve confundir-se com situacionismo, que este é o lugar onde o citacionismo acontece, a mania das citações, que até poderiam ser interessantes, se fossem verdadeiras. Einstein, Tesla, Pessoa – eu sei lá! – já disseram tudo e o seu contrário, mesmo sem terem dito.

Há uma frase habitual no citacionsimo muito querida das hostes pseudo-ecológicas que vem sendo atribuída a um chefe índio qualquer, que reza assim: «Quando a última árvore for cortada, quando morrer o último peixe, quando o último rio acabar contaminado, todos verão que o dinheiro não se come». Quem o disse e escreveu foi Alanis Obomsawin, cineasta, pintora e escritora canadiana nascida nos USA

domingo, 22 de maio de 2022

UM ESCONJURO DA 25ª HORA

 UM ESCONJURO DA 25ª HORA

Nós somos os filhos bem-nascidos e bem perfilhados de uma cultura belicista. Antes de mais, porque a guerra sempre foi um excelente negócio e a violência a mais usada apologia da virilidade. São de violentos, em quase toda a parte, as estátuas mais imponentes que enfeitam as grandes praças das grandes cidades. Os pombos, na sua bendita filosofia, dão-lhes o tratamento adequado. As mães, não. As mães, na sua missão de perpetuar os nossos vícios, dizem aos meninos: aquele é que é o tal herói.

Em muitas ocasiões do nosso conturbado percurso histórico se deu razão à sentença «se queres a paz, prepara a guerra», mas nos nossos dias foi-se mais longe: fazem-se guerras ditas preventivas, agravadas pela iniquidade e pela cobardia de serem assimétricas. O preceito, se levado até às últimas consequências, implicará a guerra total de quem se entenda mais forte contra todos aqueles que, sendo fracos, se presuma que possam a qualquer momento se tornar perigosos, o que, em tese, não contempla excepções, porque é uma evidência que todos – indivíduos e nações – somos perigosos. Sempre fomos perigosos. Acresce que a guerra comporta em si o saque, nas suas diferentes nuanças, o que a torna um grande negócio. Foi assim no passado e é hoje mais do que nunca.

Para se fazer a guerra, um pouco de loucura agressiva ajuda muito, mas não é suficiente, porque as guerras fazem-se sempre com vista à rapina e à conquista, coisas demasiado normais no cadastro humano. Precedendo-as e preparando-as é sempre bom arranjar um leque de justificações (necessariamente enviesadas) e apelos moralizadores. Mas sendo hoje o tempo dos pequenos homens, bastam toscas mentiras para arrastar a corte reverberal que nos há-de martelar o bichinho do ouvido até à surdez. Depois, seguem-se os decretos como água benta de limpar todo o pecado e bulas de cocaína para nos adormecer.

Mas, no estágio actual do mundo, e considerando os meios destrutivos que desenvolvemos, se a guerra for levada até às últimas consequências nenhuma nação beneficiará em definitivo dos seus réditos, nenhum indivíduo terminará vitorioso, todos sairemos derrotados: extinguir-nos-emos. Então, conviria tratarmos de ser inteligentes e convencermo-nos que estamos condenados, mesmo que a condenação não seja pelos melhores motivos, a implementar uma cultura de paz e integração do outro e da diferença. Aqui, talvez o nosso medo e a nossa muita cobardia possam tornar-se inesperadas virtudes. Mas se prevalecer a irracionalidade das “virtudes” guerreiras: agressividade, violência, cupidez, desumanidade, talvez estejamos em vésperas de acontecimentos de que nenhum cronista falará,